quarta-feira, 23 de março de 2011

Apenas estadunidenses


Em "Estadunidense", artigo publicado recentemente na Folha de Paulo [13.1.2005], Demétrio Magnoli dedicou-se à doce e cada vez mais comum prática de atacar corajosamente os fracos e defender caninamente os fortes. Sem papas na língua, denunciou a impugnação, por "antiamericanos" raivosos, do direito dos cidadãos USA de serem chamados de "americanos". "Eles eram americanos, foram rebaixados a norte-americanos e hoje não passam de estadunidenses."
Para Magnoli, a negação no mundo das palavras do direito dos cidadãos USA de se auto-denominarem "americanos" expressa, simbolicamente, nada menos do que a vontade de fazê-los desaparecer do mundo real. "A privação do nome próprio equivale a uma eliminação simbólica do inimigo e funciona como prelúdio ideológico do extermínio prático, que permanece como ideal."
América abre as asas sobre nós!
Trata-se de denúncia muito séria, já que aponta plano terrorista de destruição de massas, dirigido contra toda aquela população! Magnoli revela portanto um novo e até agora desconhecido Eixo do Mal. O lingüístico! Assim sendo, investido de furor santo, pontifica, grave: "América, ao contrário do que pensam os antiamericanos, é o nome legítimo dos EUA!"
A apologia do intelectual orgânico do Big Brother não se limitou ao campo lingüístico, invadindo o campo histórico com a mesma falta de contenção. "A Revolução Americana instaurou a primeira república contemporânea e antecipou a Revolução Francesa. O princípio da igualdade política dos cidadãos, realizado na América, contrastava com o Antigo Regime [...]."
Mais ainda. Magnoli propõe que "os 'Pais Fundadores' enxergavam os EUA como portadores da missão de difundir a liberdade. Esse conceito contém as sementes do espírito cruzadista que ainda anima a política externa americana, mas não deixa de refletir a grande ruptura com o mundo dos privilégios de sangue que inaugurou a nossa era."
Palavra e poder
A palavra não é jamais neutra. Ela é forjada no contexto do mundo social, embalado por relações de poder, das quais constitui representação e simbolização, ainda que o falante possua, em geral, consciência muito frágil da origem social e ideológica da língua e da palavra das quais se serve.
É já um truísmo que o dominador procura universalizar sua essência singular e imortalizar seu caráter transitório. Em um mundo atravessado pelos conflitos de poder, a possibilidade de uma palavra possuir vários sentidos – polissemia – constitui palco privilegiado da pretensão, do pólo social dominante, apresentar-se como o todo, encobrindo a parte dominada.
Originariamente, a palavra homo descrevia toda a espécie humana. Sua apropriação como designativo do indivíduo de sexo masculino, no contexto da ordem patriarcal, apoiou, no mundo da língua, o encobrimento e a subalternização da mulher, no mundo das coisas.
A língua do Império
A apropriação evasiva do designativo "americano" pelos habitantes USA é tão imprópria quanto seria a pretensão dos habitantes da Espanha à exclusividade da designação de "ibéricos", lançando os portugueses ao mar. Simbolicamente, é claro! Ou, dos cidadãos da África do Sul exigirem o uso exclusivo do qualificativo "africano", por portarem o nome do continente no da nação.
A designação dos habitantes USA como americanos não é neutra e anódina, desprovida de decorrências políticas, culturais e ideológicas. Ela obriga naturalmente os demais americanos a assumirem apelativos restritivos para definirem o pertencimento à América – centro-americanos, sul-americanos, latino-americanos.
O uso polissêmico da categoria "americano" enseja que, ao lado dos "americanos" imediatos, plenos e legítimos, já que política, econômica e militarmente dominantes, surjam "americanos" necessariamente mediados, parciais e semi-legítimos, devido a sua subalternização continental. O império no mundo dos fatos se reflete e se reforça no mundo das palavras.
Somos todos americanos
A designação exclusiva dos habitantes USA como norte-americanos é igualmente incorreta, já que canadenses e mexicanos são também habitantes da América do Norte. Convenhamos que, apesar de sua dimensão geográfica, não cabe ao Brasil o direito de reservar prepotentemente ao seu habitante o designativo exclusivo de "sul-americano"!
A definição dos cidadãos USA como estadunidenses constitui a única nominação pátria correta, lingüística e sociologicamente. Ela constitui restauração lingüística, desprovida de julgamento de valor, do sentido inicial do termo "americano" – habitante da América –, que sofreu deslocamento semântico impróprio devido ao poder material e cultural do imperialismo estadunidense.
Contrariamente ao que pensa Magnoli, a impugnação da impertinência lingüística "americano" não possuí qualquer sentido genocida, já que permite a sobrevida plena dos cidadãos USA, no mundo da linguagem e dos fatos, ao lado dos outros povos das Américas. Todos designados como "americanos", no geral, sem exclusivismo, e referidos por seus designativos pátrios – cubanos, brasileiros, estadunidenses, etc. –, no particular.

Americano, norte-americano ou estadunidense?



A dúvida do leitor nos leva longe. As três formas têm adeptos no português contemporâneo – o que não quer dizer que se equivalham inteiramente – e sempre rendem discussões quentes.

Como toda discussão quente, esta costuma ignorar argumentos baseados na razão, como o de que escolher entre americano, norte-americano e estadunidense não é uma questão de certo e errado, mas uma decisão vocabular legítima tomada por cada falante. Decisões vocabulares sempre revelam algo sobre o sujeito, seu grau de informação, modo de encarar o mundo e, sim, posição política.
Americano é a forma mais comum e também a mais enraizada na história de nossa língua. De Machado de Assis a Caetano Veloso – “Americanos são muito estatísticos/ Têm gestos nítidos e sorrisos límpidos” – existe uma tradição cultural séria a legitimar americano como termo preferencial para designar o que se refere aos Estados Unidos no português brasileiro.
Sempre houve quem se incomodasse com isso, por acreditar que essa escolha aparentemente inocente trazia embutida uma concordância com o sequestro que os conterrâneos de John Wayne fizeram de termos mágicos – América, americanos – que deveriam ser propriedade de todo o Novo Mundo. Os brasileiros também somos, assim como argentinos, venezuelanos e tobaguianos, americanos, certo? Claro que está certo.
Assim, de um impulso nacionalista ou continentalista, surgiram dois subgrupos, o que prefere norte-americano e o que opta por estadunidense. É provável que estadunidense – que já foi a terceira opção dos brasileiros e é a que contém maiores dosagens de antiamericanismo – tenha conquistado o segundo lugar durante o pesadelo dos oito anos de George W. Bush.
O problema é que o principal argumento contra o uso de americano – o de que o termo está “errado” porque quer dizer tudo o que se refere às três Américas – é ingênuo. Americano quer dizer as duas coisas. Assim como mineiro pode designar tanto um trabalhador em minas, seja ele búlgaro ou cearense, quanto um natural do estado de Minas Gerais, e o contexto resolve qualquer possível ambigüidade. Isso não é argumento. E ainda que fosse, norte-americano sofreria do mesmo problema, o de excluir canadenses e – dependendo da classificação – mexicanos de um termo que deveria incluí-los por força de geografia e história.
Quanto a estadunidense, bem, aqui a questão é política, ponto. Por que logo eles, os americanos, teriam o direito de usar como emblema, medalha azul-vermelha-e-branca no peito, a sonoridade de América? Se nós também somos América e temos até uma Iracema, isso não seria pura pilhagem cultural, muque colonialista, arrogância ianque?
É claro que se pode pensar assim, e de certa forma foi isso mesmo que ocorreu. Mas o fato cru é que, quando grande parte do mundo estava sendo redividido e rebatizado, os caras foram espertos no trabalho de branding. Correram logo ao cartório mundial com o bebê no colo e assimilaram – se não a América-coisa, que é obviamente inassimilável – pelo menos a palavra América e uma ideia de América. São os Estados Unidos da América como nós já fomos os Estados Unidos do Brasil. Ninguém nos chamava de estadunidenses na época.
Paciência, então? Isso vai de cada um. Minha paciência é menor com episódios de gato-mestrismo linguístico – “você está errado por falar como todo mundo, eu e uns poucos outros é que estamos certos” – do que com os Estados Unidos da América, sobretudo na era Obama. No fim das contas, bastaria o pernosticismo da palavra estadunidense para me indispor contra ela.
Prefiro outra posição: a de que, do ponto de vista da língua, não existe certo ou errado aqui. Assim como a mandioca também pode ser, por questões regionais, chamada de aipim ou macaxeira, os termos americano, norte-americano e estadunidense são opções vocabulares à disposição do falante de português. Mas convém saber aquilo que cada um realmente implica antes de sair brandindo argumentos furados de autoridade.
Fonte: Veja
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