Em "Estadunidense", artigo publicado recentemente na Folha de Paulo [13.1.2005], Demétrio Magnoli dedicou-se à doce e cada vez mais comum prática de atacar corajosamente os fracos e defender caninamente os fortes. Sem papas na língua, denunciou a impugnação, por "antiamericanos" raivosos, do direito dos cidadãos USA de serem chamados de "americanos". "Eles eram americanos, foram rebaixados a norte-americanos e hoje não passam de estadunidenses."
Para Magnoli, a negação no mundo das palavras do direito dos cidadãos USA de se auto-denominarem "americanos" expressa, simbolicamente, nada menos do que a vontade de fazê-los desaparecer do mundo real. "A privação do nome próprio equivale a uma eliminação simbólica do inimigo e funciona como prelúdio ideológico do extermínio prático, que permanece como ideal."
América abre as asas sobre nós!
Trata-se de denúncia muito séria, já que aponta plano terrorista de destruição de massas, dirigido contra toda aquela população! Magnoli revela portanto um novo e até agora desconhecido Eixo do Mal. O lingüístico! Assim sendo, investido de furor santo, pontifica, grave: "América, ao contrário do que pensam os antiamericanos, é o nome legítimo dos EUA!"
A apologia do intelectual orgânico do Big Brother não se limitou ao campo lingüístico, invadindo o campo histórico com a mesma falta de contenção. "A Revolução Americana instaurou a primeira república contemporânea e antecipou a Revolução Francesa. O princípio da igualdade política dos cidadãos, realizado na América, contrastava com o Antigo Regime [...]."
Mais ainda. Magnoli propõe que "os 'Pais Fundadores' enxergavam os EUA como portadores da missão de difundir a liberdade. Esse conceito contém as sementes do espírito cruzadista que ainda anima a política externa americana, mas não deixa de refletir a grande ruptura com o mundo dos privilégios de sangue que inaugurou a nossa era."
Palavra e poder
A palavra não é jamais neutra. Ela é forjada no contexto do mundo social, embalado por relações de poder, das quais constitui representação e simbolização, ainda que o falante possua, em geral, consciência muito frágil da origem social e ideológica da língua e da palavra das quais se serve.
É já um truísmo que o dominador procura universalizar sua essência singular e imortalizar seu caráter transitório. Em um mundo atravessado pelos conflitos de poder, a possibilidade de uma palavra possuir vários sentidos – polissemia – constitui palco privilegiado da pretensão, do pólo social dominante, apresentar-se como o todo, encobrindo a parte dominada.
Originariamente, a palavra homo descrevia toda a espécie humana. Sua apropriação como designativo do indivíduo de sexo masculino, no contexto da ordem patriarcal, apoiou, no mundo da língua, o encobrimento e a subalternização da mulher, no mundo das coisas.
A língua do Império
A apropriação evasiva do designativo "americano" pelos habitantes USA é tão imprópria quanto seria a pretensão dos habitantes da Espanha à exclusividade da designação de "ibéricos", lançando os portugueses ao mar. Simbolicamente, é claro! Ou, dos cidadãos da África do Sul exigirem o uso exclusivo do qualificativo "africano", por portarem o nome do continente no da nação.
A designação dos habitantes USA como americanos não é neutra e anódina, desprovida de decorrências políticas, culturais e ideológicas. Ela obriga naturalmente os demais americanos a assumirem apelativos restritivos para definirem o pertencimento à América – centro-americanos, sul-americanos, latino-americanos.
O uso polissêmico da categoria "americano" enseja que, ao lado dos "americanos" imediatos, plenos e legítimos, já que política, econômica e militarmente dominantes, surjam "americanos" necessariamente mediados, parciais e semi-legítimos, devido a sua subalternização continental. O império no mundo dos fatos se reflete e se reforça no mundo das palavras.
Somos todos americanos
A designação exclusiva dos habitantes USA como norte-americanos é igualmente incorreta, já que canadenses e mexicanos são também habitantes da América do Norte. Convenhamos que, apesar de sua dimensão geográfica, não cabe ao Brasil o direito de reservar prepotentemente ao seu habitante o designativo exclusivo de "sul-americano"!
A definição dos cidadãos USA como estadunidenses constitui a única nominação pátria correta, lingüística e sociologicamente. Ela constitui restauração lingüística, desprovida de julgamento de valor, do sentido inicial do termo "americano" – habitante da América –, que sofreu deslocamento semântico impróprio devido ao poder material e cultural do imperialismo estadunidense.
Contrariamente ao que pensa Magnoli, a impugnação da impertinência lingüística "americano" não possuí qualquer sentido genocida, já que permite a sobrevida plena dos cidadãos USA, no mundo da linguagem e dos fatos, ao lado dos outros povos das Américas. Todos designados como "americanos", no geral, sem exclusivismo, e referidos por seus designativos pátrios – cubanos, brasileiros, estadunidenses, etc. –, no particular.
Fonte: Espaço Acadêmico